TRABALHO, TRABALHO, ARTISTA

O que há em comum entre artistas plásticos e trabalhadores? É talvez, por não encontrarmos visível uma relação imediata da ideia que temos sobre arte, fortemente impregnada do que se construiu no século XIX, e a experiência que temos sobre trabalho – e talvez também pela dificuldade de legibilidade da dita arte contemporânea –, que se faz urgente relembrarmos a história da formação do artista. Responder a questão que abre este texto nos exige fôlego, e uma atenção aguda.

O ateliê, conhecido por ser o local de produção do artista, não abriga sempre as mesmas características ao longo da história, tampouco o artista é um personagem social que sempre existiu. No pré-Renascimento, o ateliê era recinto de artífices; um canteiro para manufatura de toda sorte de objeto: de tintas à saleiros, de monumentos à candelabros. A produção ocorria de forma coletiva, com divisão hierárquica de trabalho, destinada a suprir as demandas por utilitários e adornos de uma dada sociedade em síntese medieval [1].

No próprio ateliê se concentrava toda a cadeia produtiva, desde a formação profissional regida pela tradição oral, passando pela produção do objeto em si, por sua comercialização e distribuição. O lugar era dirigido por um mestre artesão, responsável pelo ensino, pela negociação de encomendas, e pela direção dos trabalhos.  Ponto primordial para se entender a emancipação deste mestre artesão em artista é saber que dirigir o trabalho significava fazer o disegno, ou seja, o projeto do objeto a ser produzido.

É claro, há uma série de fatos que propulsionam a transformação desse regime artesanal ao regime das artes, e que se dilata em transformação até hoje. Mas um deles é essencial, também porque, de certa forma, e curiosamente, nos dá indício do que é que se vêm tentando operar na prática artística contemporânea.

Trata-se precisamente do Humanismo tal como praticado no Renascimento até a primeira metade do século XV [2]. Diz-se dele por uma interpretação filológica e histórica do mundo, presente tanto no saber científico quanto no filosófico, que tem a cultura antiga (greco-romana) como modelo. É específico do Humanismo renascentista neste período não se restringir ao saber literário (gramática, retórica e lógica) advindo do medievo (studia humanitatis), mas incorporar a filosofia, a moral, a ética, a política, a economia, a filosofia natural, a matemática e a medicina como ferramentas pedagógicas para instrução de si e efetivação destes saberes em interface, à serviço do mundo, de forma prática. O Humanismo funda-se, portanto, em um modo de conduta que proclama a condição terrena do homem, faz um elogio a vida ativa, e o encoraja para a vida social enquanto ator da cidade. Esse Humanismo favorece a civilidade, ou seja, a vida comum e a constituição política do cidadão.

É este pensamento e prática que influenciaram artífices (pintores, escultores e arquitetos) para a reivindicação de uma independência ao regime de produção que os subordinavam. A estes artífices foi dado, socialmente e culturalmente, o direito de se considerarem pensadores. O que os fundamentavam enquanto tais foi justamente o disegno, fato incontestável de que a inventio [3] era o real lugar de atuação do artífice e não a execução de um objeto. O desenho tornou-se, portanto, índice da capacidade de elaboração e convencimento intelectual do artífice. Com o tempo passou-se gradativamente do anonimato (artífice) para a autoria (artista), a medida que o valor da matéria-prima de um objeto e a destreza técnica empregada em sua feitura deixava de se sobrepor à destreza intelectiva.

Com a circulação de textos da antiguidade clássica traduzidos para o italiano (vulgata) o ateliê passou a ser lugar de discussão teórica, científica e filosófica. E pouco a pouco, em casos exemplares, os ateliês foram se tornando independentes das corporações de ofício. É na reivindicação do papel social destes artífices, por ele mesmos, enquanto intelectuais, e na sistematização de seus saberes e modos de operar que se inicia a História da Arte; não pela narração dos grandes feitos históricos, mas pela narração de sujeitos comuns que contemplam a dimensão do vivido. Filhos de ferreiros, padeiros, pedreiros, marceneiros, pintores, açougueiros, escultores, enfim, trabalhadores, ao se entenderem enquanto poetas, se inscrevem na história.

Com isso, algo se ganha, mas algo também se perde. Para se distanciarem dos artesões e se aproximarem dos intelectuais, os artífices, artistas em emancipação, passam a entender como demérito o saber manual, e devem negar sua condição de trabalhadores. Para que se firmassem enquanto uma nova classe de atores sociais, distintos dos artesões, os artífices tiveram de apagar qualquer vestígio de trabalho manual, ou quando o deixaram a mostra, o fizeram para pôr em evidência um virtuosismo incomum [4].

Tivessem reivindicado um saber do corpo que busca elaborar pensamentos justamente por estar em confronto com a matéria, nossa história seria diferente. Essa elaboração é, no entanto, algo que acontecerá apenas no século XX. Na origem do artista, não lhe coube se atentar para a posição epistemológica particular que ocupa em que não deveria haver distinção hierárquica entre o saber manual e o saber mental; na qual se permite borrar a fratura entre esses dois polos, à revelia do que temos hoje como estrutura social e trabalhista.

Outra aproximação possível travada entre artistas plásticos e trabalhadores refere-se à alienação de ambos. Trata-se de outra questão complexa. Não cabe aqui destrinçar o termo alienação e seu emprego pelos diferentes filósofos e daí suas inúmeras implicações semânticas. Não é de nossa competência. Entretanto, grosso modo, alienação dirige-se à relação do trabalhador circunscrito ao regime do Capital, que por dispender tanto tempo no trabalho, deixa de lado tanto as tomadas de decisões de sua vida íntima quanto de sua vida comum, em sociedade.

Não é, portanto, uma situação muito distinta daquela que existiu na Antiguidade Clássica. Ali, a produção artesanal era realizada por escravos (espólios de guerras) ou estrangeiros que pela rígida mobilidade social provinham hereditariamente de uma tradição de artesões. Por gastarem tempo demais com o labor, não tinham direito político à cidade, assim, não eram considerados cidadãos. A distinção que se operava entre pensadores e artesões era uma distinção de poderes, cada qual em seu nicho de atuação, mas ainda, sem deméritos.

A resposta para a mudança desta condição servil, seja qual for a época histórica, seria a possibilidade de refletirmos e formularmos questões sobre o mundo a nossa volta, mediante a consciência da importância de nosso fazer na transformação e efetivação do ambiente construído; ou seja, a partir da interferência que nosso fazer pode operar no mundo. Daí sua potência transformadora.

É claro que este texto não pretende sanar as questões levantadas, mas abrir possibilidades para a reflexão de como a prática artística pode ser um modo de interferência no mundo. Ele é, sobretudo, parte propositiva do projeto “Ação para Erguer Colinas” que entende o discurso e sua veiculação como também local de atuação artística.

A ocupação “Ação para Erguer Colinas”, dos artistas Luis Arnaldo e Marcelino Peixoto (Xepa), pretende colocar em pauta a relação entre artistas plásticos e trabalhadores, tendo o Desenho como agenciador. “Ação para erguer Colinas” é um dos vencedores do Prêmio Funarte de Arte Contemporânea de 2015 e ocupa o Galpão 5 da sede da instituição em Belo Horizonte, de 15 de julho à 31 de agosto.

Nela, os artistas aproximam fazeres cotidianos, no caso, o trabalho em um canteiro de obra, como sinônimos do trabalho do artista e fazem do recinto expositivo um canteiro para construção em que o ato de desenhar – ora, a ação em sintonia com o desenho – é apresentado como modo de construção do espaço.

Colocar em cena o ato de desenhar, o acontecimento que opera o risco, é estratégia para evidenciar esta relação íntima com o espaço. O ato de desenhar é um acontecimento, em atividade, a fim de organizar o espaço e aquilo que dará origem ao desenho. É essa premissa que faz com que outras formas de organização do espaço, outras ações, também possam ser encaradas como ato de desenhar: a circulação de pessoas, a demarcação de terras, ou o habitar cotidiano de um lugar.

Estas ações de desenho, que têm o corpo como referência, em consumo de tempo e de esforço, na destinação do tempo para efetivar algo, que Desenhar e Trabalhar passem a ser atos equivalentes. Dizemos mesmo em relação ao “protocolo do trabalho”, referindo-se à “jornada de trabalho” e sua vinculação com a mão-de-obra. Dado o esforço necessário para o desenho, que demanda uma escala de horário, um compromisso burocrático, necessário à execução de atos mecânicos, maquinais, repetitivos, desenhar não deixa de ser um trabalho tão ordinário (comum, regular, banal, medíocre) quanto o do sujeito que ergue paredes; ou o do calceteiro, que calça passeios; ou o da faxineira, ou o da secretária, ou o do médico plantonista.

E ainda, o Trabalho como instância necessária ao desenho também quer inscrever o artista no conjunto do trabalhador comum, destituindo a imagem social do artista afetado, cheio de idiossincrasias. Trabalhadores, cada qual, em seu nicho de atuação, constroem para si uma inteligência artesanal, um modo particular de operar, em que corpo e instrumentos são, pelas próprias necessidades e especificidades do fazer, adaptados. No caso, é o desenho que nos torna específicos. Mas não só. Diz-se da “divisão do trabalho” entre manual e intelectual, entre o mestre de obras e o pedreiro, pois bem, o artista, ao se apropriar destas ações de trabalho já consolidadas no âmbito sociocultural, pode dissolver tais hierarquias. Ele opera na intelecção através do manual.

É por meio deste fazer ordinário: o ato de desenhar, que não prescinde de um corpo, e que exige um compromisso com o tempo, que se acaba, como consequência, por impregnar o entorno e transformar o espaço de atuação. Dito de outra forma, podemos pensar então na conformação de um desenho do lugar, onde o Desenho é o Lugar, construído (ainda que instável e efêmero) pelos modos de uso do espaço, pondo a prova o que pode o vínculo entre corpo, espaço e paisagem. Trata-se de uma progressão de escalas (do corpo à paisagem) cujas amarras vão sendo traçadas entre um e outro por meio das “ações de desenhar”. O ato de desenhar ocupa o espaço com gestualidades, modos de se portar do corpo, objetos, matérias, que são atributos efêmeros do espaço.  Com o tempo tais atributos vão gradualmente alterando o espaço, que, se a princípio se mostrava impessoal em relação aos sujeitos, irá aos poucos ganhando propriedade e características suficientemente capazes de dizerem de um Lugar.

 

Luis Arnaldo e Marcelino Peixoto

 

[1] Síntese medieval é o termo cunhado por Arnold Hauser para designar o sistema sociocultural medieval em que todas as relações eram estabelecidas por fundamentos teológicos do Cristianismo. A falência desse sistema se dá pela Revolução Humanista, um dos principais marcos da transição para a Idade Moderna. Cf. HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo, 1972-74.

[2] Brandão esmiúça a história do termo humanismo desde sua origem para nos precisar em pormenores duas acepções distintas de Humanismo que estiveram em uso ao longo do Renascimento. Cf. BRANDÃO, Carlos A.L. Humanismo, Renascimento e L.B. Alberti. In: O combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte, 2000.

[3] O termo foi tomado no Renascimento da Oratória de Cícero e é um dos cinco cânones deste saber. Inventio designa precisamente a elaboração lógica durante um discurso para se formar um argumento, e com isso alcançar o convencimento do ouvinte.

[4] Cf. FERRO, Sérgio. Artes Plásticas e Trabalho Livre: de Dürer a Velázquez. São Paulo, 2015.

 

[Texto publicado e disponível em: https://www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/10537-mg-ocupacao-artistica-reivindica-fim-da-fratura-entre-trabalho-intelectual-e-manual. São Paulo, 11 ago. 2017.]