O TRABALHO DO DESENHO: O DESENHO DO TRABALHO

 

Modificação da matéria e modificação do espírito em uma interação entre o pensamento e a mão prolongada.
Victor Grippo

 

O Coletivo Xepa vem erguendo estruturas destinadas à impermanência ao longo de mais de 10 anos de atuação, por meio de um exercício persistente de problematização da relação entre a matéria, sua destruição e permanência: Linha de força (2006), El precio de los ladrillos no se pelea (2007), Edificação e queda dos corpos (2008), Edificação (2009), Derrama (2015), Ação de desenhar o que resta (2015). Tais trabalhos se inscrevem numa tradição de crítica da arte contemporânea à noção mesma de obra compreendida enquanto uma realidade finita e perdurável. São acontecimentos instáveis e efêmeros que querem compartilhar da vida, propondo-se como interpelações àqueles que deles são testemunhas e assim afirmando a ambição de índole política da arte contemporânea de promover transformações subjetivas.

Nesses projetos/trabalhos os artistas, em colaboração com convidados, lidaram com materiais próprios da construção civil em atividades de construção e desabamento, afirmando tais ações desde o território do desenho. Ação para erguer colinas reúne o Coletivo Xepa e Luis Arnaldo em um trabalho que busca perseguir questões anunciadas com Ação de desenhar o que resta, realizada pelos artistas na Galeria GTO do Sesc Palladium, em Belo Horizonte. Em ambos os trabalhos, e também no projeto Pequenas Audições [1], o ato de desenhar é o agenciador de visibilidades e legibilidades. Em Ação para erguer colinas ele é compreendido de maneira ampliada, envolvendo tanto o manejo do lápis grafite sobre a parede, quanto aquelas atividades habituais do trabalho na construção civil: encher de areia o carrinho de mão, carregar e despejar essa matéria granulosa. É porque ao Desenho cabe um saber/fazer próprio da estruturação de espacialidades que tais ações de ordenação do espaço são assumidas como ato de desenhar.

Assim, Ação para erguer colinas ocupa o Galpão 5 da Funarte MG por meio de duas ações complementares: Erguer colinas (deslocar a areia do espaço externo para o espaço interno) e Exílio (desenhar sobre as paredes). Elas redefinem continuamente o espaço expositivo ao longo de 45 dias. Um volume considerável de areia (80 m3 ou 112 toneladas) é inicialmente endereçado ao local. A areia é depositada no pátio interno  – de maneira que a ação possa ser percebida por aqueles que circulam pelo viaduto da Floresta e pela passarela da Rua Januária –, marcando a abertura da exposição. Do lado de dentro do galpão encontram-se tábuas de madeira, carrinhos de mão e pás, compreendidas simultaneamente como ferramentas de trabalho e desenho. O Coletivo Xepa e Luis Arnaldo dão início ao processo de deslocamento de um monte de areia para o interior do galpão e assim sucessivamente vão povoando o espaço expositivo com colinas [2], compondo uma paisagem desértica e silenciosa.  O procedimento revela uma economia plástica e poética.

O Galpão 5 vai sendo também habitado por imagens fotográficas das colinas projetadas sobre as paredes. Sobre tais projeções os artistas traçam os vestígios dessas imagens, afirmando o desenho como índice e memória de um acontecido. Assim, ao visitarmos a exposição, podemos encontrar a presença da areia, das colinas, das imagens projetadas, dos desenhos sendo realizados sobre essas projeções, dos corpos em trabalho. Cada um desses elementos nos coloca frente ao processo de ocupação do espaço que revela um diálogo insistente com o tempo. Diante desse encontro, somos convidados a acolher um estado de refreamento nomeado pelos artistas como Exílio. Um estado de lentidão e silêncio que os próprios artistas visitam na execução morosa pela qual imprimem ao traço diferentes tonalidades, conforme a pressão que exercem no trajeto do lápis. Dessa maneira, ao arquitetar um espaço de ação e ao mesmo tempo reivindicar um estado de concentração e quietude, Ação para erguer colinas busca equacionar certa relação entre atividade e suspensão.

O projeto também procura se posicionar criticamente em relação às linguagens hegemônicas da arte contemporânea: “instalação” e “performance”, optando pelo termo “ocupação”. Allan Kaprow, uma referência decisiva no experimentalismo dos anos 60, escrevendo em 1991, reprova a instalação pelo que nomeia como um caráter cenográfico, comparando-a ao happening e advogando em favor do segundo. Criticando o que compreende como um caráter intelectual da instalação, afirma seu interesse contrário por uma experiência que se propõe enquanto pensamento incorporado. “A instalação é para o environment como a performance é para o happening: formas atrasadas (retardataries) de protótipos radicais.” [3]

Parece-me elucidativo que os artistas proponham outro termo para se referirem a Ação para erguer colinas, o que sinaliza um esforço de distanciamento crítico e elaboração conceitual.  Não estamos nos movendo no território das vanguardas, mas, tampouco interessa acolher de maneira inconteste designações estabelecidas. O termo “ocupação” guarda sentidos promissores, uma vez que diz respeito a tomar posse de algo ou de algum lugar, ao mesmo tempo em que se refere à atividade na qual se trabalha  – ocupação profissional. É um termo com implicações políticas, uma vez que manifestações sociais apoderam-se de espaços públicos, escolas, praças, etc. com o objetivo de contestar a ordem instituída.

Desde meados do século XX que a arte contemporânea vem exacerbando uma questão que está na origem da constituição do artista liberal [4].  Trata-se da instituição de uma separação entre concepção e execução da obra de arte que, na atualidade, se apresenta como uma realidade pregnante. Jacques Rancière discute esse ponto, afirmando que na arte contemporânea a ideia “retira-se em sobrevôo (sic) em relação ao trabalho de sua realização” [5]. O filósofo acrescenta que a independência que a obra assume da elaboração de uma matéria particular suprime justamente o trabalho pelo qual uma personalidade se alterava numa materialidade.

Os desenhos de parede de Sol Lewitt [Wall Drawings] ­­ – cujo 1º deles foi feito em 1968 – são uma referência significativa aqui tanto pelo modo como se relacionam com o espaço construído, como pela maneira como propõem o fazer artístico. O trabalho de Lewitt [6] enfatiza o projeto em detrimento da realização, na medida em que o artista se apresenta mais como um pensador e criador de ideias do que alguém envolvido na fatura da obra – que é delegada a terceiros. Ação para erguer colinas opera uma inflexão nesse argumento ao trazer para o centro do debate o labor envolvido no ato de desenhar.

O compromisso com esse labor nos permite recordar Mierle Laderman Ukeles, pela sua compreensão do fazer artístico em estreita conexão com as atividades ordinárias de manutenção da vida, bem como as Date Paintings, de On Kawara, em função do empenho diário na reiteração da prática artística. Assim, o propósito de sustentar o ato de desenhar durante os 45 dias do projeto revela um vínculo específico entre desenhar e trabalhar, vínculo reforçado pela participação de outros atores sociais no processo de ocupação espaço-temporal. Talvez por isso entre Ação de desenhar o que resta e Ação para erguer colinas o verbo “desenhar” tenha cedido lugar para o verbo “erguer”, marcando assim a intenção de avizinhar as atividades de artistas desenhistas e as de profissionais da construção civil.

Ajudantes de obras são requisitados em uma convocação pública para a ocupação de vagas de emprego, destinadas ao cuidado da areia que permitirá manter a forma das colinas que serão deslocadas para o interior do Galpão 5. Essa convocação é realizada durante o período expositivo, estando, portanto, por ele enquadrada. A situação não é endereçada a um público – dela participam apenas os trabalhadores e os contratantes –, todavia, pretende-se dar a ver algo com essa contratação. A questão da remuneração, tão cara às manobras de Santiago Sierra, é também elemento formal em Ação para erguer colinas. Mas, enquanto Sierra procura reiterar assimetrias constitutivas das sociedades capitalistas, assumindo o lugar do patrão, Xepa e Luis Arnaldo estabelecem como igual a remuneração da hora de trabalho dos ajudantes de obras e a dos artistas, o que marca o desejo de uma correspondência entre tais posições sociais e competências, reitera a compreensão de afinidades constitutivas entre o trabalho do desenho e o trabalho da construção, assinala que os trabalhadores, cada qual em seu nicho de atuação, desenvolvem uma inteligência artesanal na lida com matérias, materiais e protocolos de trabalho [7].

Todavia essa equiparação não negligencia a consciência de que ao artista cabe a prerrogativa de participar do mundo do trabalho manual e do mundo do trabalho intelectual ao mesmo tempo. Em A partilha do sensível [8], Jacques Rancière elabora tal conceito a partir do pensamento platônico, que postula caberem aos indivíduos participações distintas em relação à experiência comum, designadas em função dos lugares que ocupam na sociedade e das atribuições que cabem a tais lugares, e argumenta que “as práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” [9]. Para Rancière a arte é política justamente porque propõe outras diagramações para o sensível, recortes de espaços e tempos, formas de estar juntos ou separados. No contexto dessa reflexão, trata-se de perceber a arte como modo de aparição do Trabalho.

Em Ação para erguer colinas o trabalho do desenho aparece então enquanto vetor que conecta um conjunto de esforços para além da ação no Galpão 5. Entre eles cabe mencionar o engajamento dos artistas com a produção do projeto, assumindo para si a tarefa de agenciá-lo. Elaborando contratos, negociando diretamente com a instituição, desempenhando atribuições que tanto antecedem quanto ultrapassam o que se dá a ver no espaço expositivo, os artistas tomam uma posição relativa ao modo de funcionamento da cadeia produtiva das artes. Gostaria de propor aqui que percebêssemos esse exercício profissional não apenas como bastidor do trabalho, mas dizendo respeito às ações de ocupação que se quer evidenciar.

O esforço de imaginar outros públicos constitui outro ponto no itinerário percorrido pelo projeto. O crítico e curador Simon Sheik nomeia como “produção de público” as táticas de trabalhos de arte e de exposições de arte em imaginar um público intervindo no modo do endereçamento. “[…] é o modo de endereçamento que produz o público, e se alguém tenta imaginar diferentes públicos, diferentes relações que sejam desconhecidas, deve (re)considerar o modo de endereçamento ou, se preferir, os formatos das exposições de arte”. É nesse sentido que podemos apreender o plano de divulgação da exposição que compreende um ativismo gráfico com a presença de lambe-lambes em locais de ocupações urbanas.

Também nem toda a areia destinada ao pátio da FUNARTE será deslocada para o interior do espaço expositivo e a areia excedente será doada aos interessados, num gesto que investe na abertura para a possibilidade de outros desenhos. Para isso são espalhados pela cidade cartazes informando o inusitado da doação de areia e oferecendo um número de telefone. Esse expediente configura uma interpelação de outros públicos, o acolhimento de interesses extra-artísticos enquanto eventuais portas de entrada para o trabalho.

Revisitamos assim algo daquela motivação vanguardista de propor arte e vida em franco enfrentamento. Mas não se trata de postular a dissolução dessas fronteiras. Se as propostas radicais de Allan Kaprow buscavam evadir as instituições da arte e consequentemente recusar o papel do artista enquanto um profissional, trata-se antes de trabalhar a partir da consciência de si enquanto agentes do campo da arte. Trata-se de um desejo persistente de ocupar o espaço construído, fazendo dele lugar de um acontecimento, convidando o outro para uma experiência possivelmente transformadora, uma vez que orientada para a percepção da potência de construção do mundo que habitamos.

 

Fabíola Tasca

 

[1] Pequenas Audições é um projeto de Luis Arnaldo e Marcelino Peixoto que aproxima o ato de desenhar da escuta do desenho. Em sessões endereçadas a um pequeno grupo de ouvintes, os artistas desenham sobre imagens projetadas em papéis afixados na parede. Aos lápis são acoplados microfones que amplificam a sonoridade resultante do atrito entre grafite e papel. Os convidados respondem às audições com textos, nos quais elaboram a singular experiência de ouvir Desenho. Disponível em: https://pequenasaudicoes.wordpress.com.

[2] “Colinas são, por definição, estruturas mensuráveis: pequenas elevações de terreno com declive suave e com menos de 50 metros de altitude. Entretanto, a menção ao termo não se refere à definição geográfica. Em terreno onde cabe a representação, colina é também um termo metafórico. É um modo de mensurar a força e potência de construção do mundo que habitamos.” Excerto do texto “Areia e Grafite”, publicado no Blog do projeto. Disponível em: https://erguercolinas.wordpress.com e também no folder da exposição.

[3] KAPROW apud HUCHET. Cf. HUCHET, Stéphane. A instalação em situação. In: NAZÁRIO, Luis; FRANCA, Patrícia (Orgs.). Concepções contemporâneas da arte. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006. p.17-45.

[4] Em “Artes Plásticas e Trabalho Livre”, Sérgio Ferro sistematiza, no registro da fatura da obra, três respostas das artes plásticas ao desejo de ascenção social dos artistas na passagem do Pré-Renascimento ao Renascimento: o virtuosismo, a denegação ou “liso” e a sprezzatura e o non finito. Albrecht Dürer, Leonardo Da Vinci e Michelangelo são figuras paradigmáticas na argumentação do autor, uma vez que marcam a passagem do artesão ao artista, por meio da sofisticação do gesto produtivo, da denegação desse gesto e da negação determinada de práticas artesanais, respectivamente. Cf. FERRO, Sérgio. Artes Plásticas e Trabalho Livre: de Dürer a Velázquez. São Paulo: Editora 34, 2015.

[5] RANCIÈRE, Jacques. Autor Morto ou Artista Vivo Demais? Folha de São Paulo. 06 de abril de 2003. Caderno Mais.

[6] “Todo o planejamento e decisões são tomadas a priori e a execução da obra torna-se um assunto superficial. A idéia (sic) torna-se a máquina que faz a arte.” LEWITT, Sol. Parágrafos sobre arte conceitual. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. Escritos de Artistas: anos 60/70. Tradução Pedro Sussekind… et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006. p. 176-181.

[7] Luis Arnaldo em correspondência trocada com Fabíola Tasca a propósito do projeto Ação para erguer colinas.

[8] RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.

[9] RANCIÈRE, 2005, p. 17.

 

[Texto publicado em Ocupação por projeto. Belo Horizonte: Ed. do autor, 2017.]